Daria um filme
uma negra e uma criança nos braços
em meio a favela de concreto e aço
(…)
Hey São Paulo terra de arranha-céu
A garoa rasga a cara
É torre de babel
O rap expresso na letra da música do Mano Brown conta a história de vida de sua mãe, falecida dona Ana. Uma história parecida com tantas outras mães solteiras, abandonadas por seus companheiros e que buscaram na periferia de São Paulo a sobrevivência, durante o êxodo rural do final do século passado. Afinal, as elites econômicas precisavam cada vez de terras para expandir seus latifúndios.
Abandonada pelo pai por sua tia foi criada
Enquanto a mãe era empregada
Alagoana arretada!
Faz das tripas coração
Lava roupa, louça e o chão
Passa o dia cozinhando para dondoca e patrão!
Eu fui expulsa da igreja
Ela foi desassociada, porque uma maçã podre deixa as outras contaminadas
Outra cantora que une o rap e o funk para falar da vida na periferia, Linn da Quebrada consegue reunir histórias de vida de mães que possuem filhas travestis e bichas afeminadas, e que muitas vezes procuram a igreja para salvar seus filhos do mundo pecaminoso do crime e do homossexualismo. Muitas vezes sem onde deixar seus filhos enquanto trabalham para cuidar do filho da patroa branca
(feminista?).
Assim também é a minha história de vida, a quinta criança nascida depois de quatro filhos homens. A última tentativa de nascer uma menina, dizia a minha mãe, que então desistiu e fez laqueadura. Cinco filhos homens, um doado para a irmã. Para sua surpresa nunca fui homem, sempre fui mulher. Na igreja evangélica buscávamos a salvação eterna para todo aquele sofrimento causado pela pobreza, racismo, machismo e capitalismo. Mas não enxergávamos assim, pelo contrário, o pecado individualizava a culpa, se a vida era ruim era porque merecíamos, éramos pecadoras.
O tempo passou e a bicha afeminada assumiu ser travesti. Como diz a Linn da Quebrada na mesma música: “Hoje meu corpo, minhas regras, meus roteiros, minhas pregas. Sou eu mesma quem fabrico!”. Um baque, um choque para todos, que ao mesmo tempo sabiam que aquilo poderia acontecer, desde pequena afeminada demais.
O debate sobre transfeminismo não chega! Ninguém fala do assunto. A sabedoria popular é através da história oral, história de travestis que para sobreviver se rendiam ao mundo da prostituição ou do crime, mas que muitas vezes sucumbiam ao mundo das drogas. Barraqueira. Doida. Promíscua. Louca! Todas que tentam viver a liberdade acabam mortas. 35 como expectativa de vida. Sabiam aquilo
que a mídia perpetuava: travestifobias! Medo! Mas eu era sonhadora, como diz a Alice Guél em uma das suas músicas, onde sou homenageada:
Ela acreditava em cores no cheiro das flores
E que curativo também curassem dores
Vestiam ela de menino o tempo inteiro!
Ela queria ser a donzela e não o guerreiro
Vixe! Que criança estranha!
O que tem entre as pernas é minhoca ou aranha???
Mas ninguém ouvia, o tanto que essa mina sofria
Ela crescia, mas não entendia o porquê fizeram dela uma fera!
Preto, favelado, traveco
Olha lá a gazela!
Mas não está tudo acabado, havia esperança
Ela sabia de um lugar que vendia mudança, mas com muita prece
Joelhos ao chão
Passou noites acordada só na oração,
Pela Deusa Travesti
A Deusa dos corpos que querem existir: Deus é Travesti
A Deusa dos corpos que querem resistir
Não foi no evangelho, mas no Candomblé onde aprendi a transformar a dor em amor. A solidão em perdão. Como diz uma grande amiga travesti: “O problema não está em nós, mas na maneira como nos enxergam”. E a partir daí esperam que sejamos aquilo que todos e todas são. Sem questionar e nem sequer perguntar o porquê.
A travesti com muita prece, com muita oração, com muito joelho no chão clamando e suplicando forças que somente nosso Ori pode nos oferecer, com toda força ancestral. Ancestral que não tá longe, tá do lado, a mãe preta nordestina que a tudo suportou em nome de seus filhos, e que ganhou uma filha! Acolheu e amou. No meio de tantas injustiças, da falta de informação, da pobreza, do racismo, encontramos um jeito. Dá-se um jeito! Não se pode sucumbir.
Através das lutas dos movimentos sociais de travestis, transexuais e pessoas pretas consegui ingressar na Universidade pública, por meio das cotas. A primeira da família em todas as gerações pós abolição. Cientista, professora, pesquisadora.
Enquanto educadora aprendi que existem diferenças abissais entre a teoria e a prática. Na teoria somos feministas, interseccionais. Tá na moda. Tem que falar de tudo, incluí aí uma trans, uma negra. Para diversificar. Mas, e na prática? Quantas referências travestis negras você tem? Em quantas delas você se espelha? Quantas trabalham contigo? Não somos pautas, somo reais. Não queremos inclusão, queremos implosão desse sistema patriarcal, capitalista, heteronormativo.
Brasil: o país que mais consome pornografia e trabalho sexual travesti, e também o que mais mata! Como diz Preta Rara: “contrariei as estatísticas, de fato. Mulher de orgulho, diva, fina que não cai do salto”. Apesar de tudo, não perco essa força rara.
Elísha Silva de Jesus
Mestranda em Educação, Comunidades e Movimentos Sociais
brasileiras como produtoras de conhecimentos, não mais como objetos de estudo.