Aos 36 anos conheci o sistema prisional feminino com bebês.
O encarceramento em massa das mulheres e de seus filhos por uma sociedade machista e patriarcal as deixam invisíveis.
Durante o ano de 2015, fiz uma viagem, e pelo caminho na estrada já se avistava alguns prédios, aparentemente uma estrutura antiga, que não lembrava nada do que eu tinha como referência, mas sim uma grande fazenda com uma estrutura de fábrica dos anos 50.
Somos recepcionadas pelos agentes penitenciários, mas peço licença para trazer uma provocação, profissionais que em alguns casos atuam na concepção de serem “não-gentes”. Contam quantas pessoas e liberam a nossa entrada.
Antes de continuar o nosso caminho, percebemos uma imensa fila de pessoas, eram na sua maioria mulheres; elas estavam com bolsas e sacolas de viagem. Em um momento um dos visitantes verbaliza que a fila era para as visitas da ala masculina. Continuamos o nosso caminho e percebemos que na ala feminina não existe a fila de visitas, mas é para está ala que vamos. Segundo a Pastoral Carcerária:
Nos cárceres femininos, além das precariedades e violências comuns às prisões masculinas, as violações de direitos multiplicam-se: péssimo atendimento à saúde das gestantes, lactantes e mães; separação abrupta das mães e seus/suas filhos/as, incluindo adoções à revelia; falta de notícias dos/as filhos/as; ausência de materiais de uso pessoal e de roupas íntimas; restrições, quando não raro a impossibilidade, para viver a identidade afetiva, psicológica e física; pouquíssimas visitas, vivendo um verdadeiro abandono da família e da comunidade, entre outros.
Novamente passamos pela contagem e entregamos os documentos de indentificação. As janelas lembram uma arte antiga que ainda vemos nas grandes cidades em escolas com prédios antigos, para além das janelas e seus vitrais ou espaço para eles, tem os portões, grades, cadeados e quadrados; isso mesmo; os espaços são sempre nesta lógica do quadrado.
Entramos, um sentimento que não sei explicar, passamos pela revista. Somos tocadas e como técnicas que estávamos visitando os espaços, acho que não acontece da mesma forma com as mulheres em situação de reclusão ou as suas visitas quando elas as têm.
Acessamos o presídio feminino, tem uma pequena praça simples, bem cuidada e tranquila. Percebo uma mulher vindo em nossa direção, pisando bem firme, ela passa por nós, pelas grades, recebe algemas, abrem o portão, o camburão e as grades. A mulher entra, fecham a grade, a porta e o portão. O carro sai do prédio.
Abra-se outro portão e adentramos a mais um novo espaço, com um pouco mais de cor, alguns brinquedos de crianças; algumas mulheres sentadas, carrinhos de bebês e olhando a nossa chegada. Penso o que ela deve estar se perguntando: “O que vocês estão fazendo aqui?”. Na nossa lógica humana, acho que indiretamente também faço a mesma pergunta, mas não tenho este direito nem de pensar isso sobre as mulheres que estão aqui.
Caminhamos em um espaço já direcionado e limitado com mulheres e crianças que estão começando a dar os seus primeiros passos a trilharem os seus primeiros caminhos; mas não passam pelo limite das portas e grades. Era dia de Festa, dos aniversariantes do mês, o espaço estava com cor. As educadoras apresentaram os espaços. Os quartos com berço, cozinha, banheiro para as crianças e com a oportunidade de livre opção. A livre opção e conforme a necessidade do bebê e não limitado como para as pessoas adultas.
Mulheres cuidando dos bebês, alguns são seus filhos e outros filhos de outras mulheres que não podem estar ali por vários motivos. Mulheres que deram a luz em 24 horas e recebem ajuda das demais mulheres. O almoço é servido 10h, todos os materiais de plástico e não há mesas. Na ala A, abrem as trancas, entramos e esperava o som da batida da tranca, mas não ocorreu. Cubículos com camas de cimento, parecendo prateleiras nas paredes e bem altos, um tanque e privadas. O cheiro de umidade com cheiro de produtos de limpeza, mas tudo tem um certo cuidado e ordem.
As roupas dos bebês estão sendo higienizadas, mas naquele momento só as roupas dos bebês. Duas mulheres no privativo, uma porta de ferro separava elas do restante da Ala A, um pequeno quadrado, uma privação dentro de outra privação. A mulher mãe não pode ver seu filho e seu filho é punido em não ver a mãe nos seus primeiros dias de vida, tendo que “pagar” a sentença que não é sua. A criança também sofre as sanções, se mordem, correm ou choram, são punidos na figura da sua genitora, através de encaminhamentos administrativos.São vários sentimentos e vários incômodos.
A Unidade Básica de Saúde, O Centro de Educação Infantil e Vara, vão até lá e dialogam. Cada dia um direito uma conquista, uma certidão de nascimento que é lavrada, uma família que se aproxima, uma vacina, uma escola, um transporte, um abraço, uma comida, uma festa, uma alegria, um remédio, uma vida, uma criança, uma vida, uma vida maria que se rompe e muda de perspectiva. Com tão pouco tempo, tantas conquistas e alegrias. Tantas e tantas barreiras, tantas adversidades e alegrias, mas há uma perspectiva educativa e humana nestas construções.
Mas quanto educadora não posso deixar de lançar algumas perguntas:
Você já pensou que um destes bebês, pode hoje ser um educando seu?
Já imaginou que ele, o bebê, não tem muito o que chamamos de memórias afetivas ou a concepção destes elementos é bem diferente do seu?
Quando perguntamos para a avó ou tia, ou até mesmo para outro responsável legal pela criança a história pode ser uma situação de constrangimento para a família é a criança?
Já se perguntou que não ter fotos dos primeiros meses de vida, algo tão comum nos dias de hoje, pode ser por conta de uma história que não pode ser narrada verbalmente e nem por imagens?
Já imaginou estar no lugar destas mulheres, pois teve uma atitude socialmente equivocada para levar comida para os seus filhos?
Já se imaginou sendo este bebê? Sendo punido sem nem saber as regras do jogo?
Nenhuma certeza ou razão, somente perguntas e dúvidas. Inquietações.
Patricia Pio
Pedagoga com Habilitação em Gestão Escolar, Especialização em Gestão de Políticas Públicas, Inclusão e Diversidade Social, Mestranda em Educação – Formação de Professores pela UFSCAR-Sorocaba;
Tatiane Marchesan
2 anos atrásComo mãe que cuida de seus filhos, como uma Zeladora Espiritual que cuida de várias pessoas com suas diferentes dores, sempre penso sobre essas coisas que não enxergamos de pronto na vida das pessoas.
Reflexões importantes nesse texto. Parabéns pelo trabalho. 🌻
patricia pio
2 anos atrás@tatianemarchesan, muito obrigada pela sua contribuição….
Gicelia Rodrigues dos Santos
2 anos atrásPouquíssimas visitas para as mulheres, mas filas imensas na ala masculina?! Abandono, apagamento e nenhuma herança de construção familiar.
patricia pio
2 anos atrásGicelia, obrigada….
Isidia
2 anos atrásMuito boa sua matéria, o descaso está em alta para essas mulheres e filhos ambos punidos, uns pelo fato de ter cometido erros e ter que pagar e outros que ao nascerem já pagam pelo erro que não cometeram. A vida segue assim, mas o que nos leva a refletir: E se uma dessas crianças estiver em nossa sala de aula como devo agir diante de tamanha fragilidade?
patricia pio
2 anos atrásIsidia, não temos uma receita, mas acredito que o caminho seja o da escuta e acolhimento.
Paulo
2 anos atrásMuito boa a sua matéria, precisamos refletir sobre, e a partir daí, cobrar mudanças para que a dignidade dessas mulheres e bebês, de alguma forma, seja preservada.
patricia pio
2 anos atrásPaulo, sim precisamos agir nesta pauta